Os limites aos poderes do empregador e a invasão à vida privada do trabalhador

Essa análise corresponde a um trecho do artigo científico “OS IMPACTOS DA LEI GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS NAS RELAÇÕES DE TRABALHO: A TUTELA PROTETIVA DOS DADOS PESSOAIS DO TRABALHADOR“, escrito por Murilo Siqueira Comério e Eliete Tavelli Alves, publicado no livro “Direito e Tecnologia: um debate multidisciplinar”, que pode ser adquirido no site da Editora Lúmen Juris no seguinte link – https://lumenjuris.com.br/informatica-e-direito-digital/direito-e-tecnologia–um-debate-multidisciplinar-2021-3096/p

Direito e Tecnologia: um debate multidisciplinar. Obra organizada por Murilo Siqueira Comério e Tainá Aguiar Junquilho.

No momento da contratação se verifica a incidência de três princípios, a saber, o da liberdade contratual, o do acesso ao emprego e o da não discriminação, cabendo ao empregador a escolha sobre quem deseja contratar, desde que não leve em consideração fatores discriminatórios como, por exemplo, por motivos religiosos, étnicos, sexo, orientação sexual, identidade de gênero, deficiência física, idade, dentre outros.[1]

Nesta esteira, a indagação que se realiza é a seguinte: Pode o empregador invadir a esfera íntima do trabalhador no momento da entrevista de emprego, por meio de perguntas e preenchimento de questionários ou coletar expressamente o seu consentimento para o tratamento de dados sensíveis? O trabalhador, quando indagado, pode ocultar ou mentir sobre questões que envolvem a sua vida pessoal, como vida sexual, religião, convicção política, etc.? Para se alcançar a melhor solução, incumbe-nos estabelecer o silogismo sobre a invasão da vida privada do trabalhador e os seus limites.

Como é notório, o surgimento de novas tecnologias e das redes sociais (Facebook¸ Instagram, Whatsapp, etc.) desencadeou a exposição exacerbada da figura humana, por meio de publicações, fotos pessoais e qualificações profissionais. Tornou-se praxe comercial a entidade empresarial acessá-las para avaliar se aquele candidato se enquadra no perfil do cargo almejado e também para apurar se mantém boa conduta extralaboral. A conduta se mantém durante a vigência do contrato de trabalho, com a cibervigilância” patronal. Assim, a análise das redes sociais se converteu em um fator considerável no momento de convidar o candidato para a entrevista de emprego ou para a sua efetiva contratação.[2] [3]

Da mesma forma, com o avanço da medicina, os exames clínicos se tornaram acessíveis para a avaliação de doenças, como o caso do trabalhador portador de câncer, do vírus HIV ou o estado gravídico nas mulheres, questões que também motivos passaram a ser ensejadores de violência discriminatória no ambiente laboral.

O cenário levou os operadores do Direito a debater a respeito dos poderes do empregador e os limites à invasão da vida privada do trabalhador. Isto porque os aspectos pessoais ou as condutas extralaborais se tornaram obstáculos para o acesso ao emprego e, no caso da vigência do contrato de trabalho, de eventual dispensa discriminatória.[4] Sob essa ótica, a proteção da vida privada do trabalhador ganhou relevo, inclusive no direito antidiscriminatório, como prerrogativa do exercício da cidadania e do direito fundamental à liberdade.[5] [6]

Com base nessas considerações, percebe-se que é possível, porém categoricamente reprovável, que o empregador, em uma entrevista de emprego, colete informações que transcendem o suficiente e justificado para se aferir a idoneidade ou não do candidato ao emprego ofertado. Ao empregador é legítimo aprofundar questões que estejam relacionadas ao exercício da função pretendida.[7] [8]

É forçoso recordar que a Lei nº 9.029/1995, em seu art. 1º, veda a adoção de práticas discriminatórias no momento da admissão ao emprego. Assim, é vedado ao empregador coletar informações neste sentido para obstar o acesso ao emprego desse grupo de trabalhadores.

Vejamos a redação do art. 1º, da referida lei:

Art. 1o  É proibida a adoção de qualquer prática discriminatória e limitativa para efeito de acesso à relação de trabalho, ou de sua manutenção, por motivo de sexo, origem, raça, cor, estado civil, situação familiar, deficiência, reabilitação profissional, idade, entre outros, ressalvadas, nesse caso, as hipóteses de proteção à criança e ao adolescente previstas no inciso XXXIII do art. 7o da Constituição Federal.  (Redação dada pela Lei nº 13.146, de 2015)  (Vigência)

Percebe-se, assim, que, no momento da contratação, deve-se avaliar tão-somente a qualificação profissional do trabalhador e o cumprimento dos requisitos para o preenchimento da vaga de emprego, sendo que, diante da invasão injustificada e desproporcional da vida privada do trabalhador, a conduta do empregador poderá ser considerada discriminatória.


[1] AMADO, João Leal. Contrato de Trabalho: Noções Básicas. Coimbra: Almedina Editora, 2016. p. 141-142.

[2] Em aprofundamento sobre a polêmica que envolve as redes sociais e os poderes do empregador, Geraldo Magela Melo afirma que “Com a evidência da sociedade informacional emerge a feição virtual do poder empregatício, o que se denomina de ciberpoder diretivo, que é a capacidade jurídica de o empregador regular, disciplinar e fiscalizar o trabalho e as comunicações dos empregados que transcendem para as plataformas de relacionamento social. […] O uso das redes sociais viabiliza ao empregador conhecer e controlar seus empregados de forma mais incessante e intrusiva, o que esbarra na privacidade dos obreiros, pois torna-se possível saber quais atividades o empregador realizou fora e dentro do ambiente de trabalho e conhecer suas preferências e sentimentos pessoais. Tal fato permite ao ente patronal selecionar, manter, perseguir, assediar ou descartar um trabalhador em razão dos dados constantes nos perfis pessoais.”. MELO, Geraldo Magela. A reconfiguração do Direito do Trabalho a partir das redes sociais digitais: de acordo com a Reforma Trabalhista e com o marco civil da Internet. São Paulo: LTr, 2018. p. 65-66.

[3] A Alemanha e o Estado de Maryland, nos Estados Unidos, aprovaram legislações que vedam o empregador de solicitar aos selecionáveis ao emprego as senhas para acesso das redes sociais. ABRANTES, José João. Direitos fundamentais da pessoa humana no trabalho: em especial, a reserva da intimidade da vida privada (algumas questões). Coimbra: Almedina, 2014. p. 16.

[4] WARREN, Samuel; BRANDEIS, Louis. The right to privacy. In Information Privacy Law, 6ª Ed. New York, 2018. p. 21.

[5] Segundo Miguel Ángel Presno, em referência ao entendimento da Corte Europeia de Direitos Humanos no caso Pretty c. Reino Unido, “la vida privada es una noción ampla que engloba, entre otras cosas, aspectos de la identidad física y social de una persona, concretamente el derecho a la autodeterminación, el derecho al desarrollo personal y el derecho al establecer y mantener relaciones con otros seres humanos y el mundo exterior”. PRESNO, Miguel Ángel. El concepto inclusivo de familia como principio emancipatorio de la vida social. In Revista da AJURIS – Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: AJURIS, a. 38, n. 122, junho de 2011. p. 309 e ss.

[6] José João Abrantes destaca que “o trabalhador pode, em regra, dispor da sua vida extraprofissional, sendo vedado ao empregador investigar e/ou fazer relevar factos dessa sua esfera, a não ser que haja uma ligação directa com as suas funções. Nomeadamente, factos que integram a vida privada do trabalhador (até mesmo, por exemplo, no caso de uma condenação penal) não podem constituir justa causa para o seu despedimento, a não ser que, em concreto, tenham ‘reflexos prejudiciais no serviço’, isto é, possam perturbar a empresa e o correcto desenvolvimento das prestações contratuais, por motivos directamente ligados às funções por ele exercidas ou à natureza da própria empresa (por ex. empresa de tendência)”. ABRANTES, José João. Direitos fundamentais da pessoa humana no trabalho: em especial, a reserva da intimidade da vida privada (algumas questões). Coimbra: Almedina, 2014. p. 13.

[7] MOREIRA, Teresa Coelho. Igualdade e Não Discriminação:Estudos de Direito do Trabalho. Coimbra: Almedina, 2013. p.133-134.

[8] O Doutor João Leal Amado ressalta que “Mas, do mesmo passo, e em princípio, o empregador não poderá exigir a candidato a emprego que preste informações relativas à sua vida privada, à sua a saúde ou ao seu eventual estado de gravidez (art. 17º, nº 1). Daí que o empregador não possa, no decurso de uma entrevista de seleção ou em questionários escritos, colocar questões ao candidato que cindiam, p. ex. na sua vida afetiva ou na sua orientação sexual, nas suas convicções políticas, ideológicas ou religiosas, nas suas preferências sindicais, na sua paixão clubista, na sua (atual ou desejada) gravidez, etc.” AMADO, João Leal. Op. cit. p. 143.

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